'Bateram nela, puxaram o cabelo dela. E não tinha ninguém lá dentro': a faxineira presa por fazer live da polícia em sua casa durante operação no Rio
Operação no Rio de Janeiro deixou 121 mortos, sendo quatro deles, policiais. Reuters A faxineira Gabriela Cristina Elias de Jesus, moradora do Complexo da Pen...
Operação no Rio de Janeiro deixou 121 mortos, sendo quatro deles, policiais. Reuters A faxineira Gabriela Cristina Elias de Jesus, moradora do Complexo da Penha, foi presa e pode responder por associação ao tráfico por ter feito uma live filmando agentes durante a megaoperação policial contra o Comando Vermelho no Rio de Janeiro, na terça-feira (28/10). O relato da prisão foi feito à BBC News Brasil pela mãe de Gabriela, Selma Elias de Jesus, de 62 anos, segundo quem a faxineira fez as lives enquanto tentava impedir que policiais entrassem na sua casa em meio ao tiroteio entre os agentes e integrantes da facção. "Bateram nela, puxaram o cabelo dela. E não tinha ninguém lá dentro", contou Selma à BBC News Brasil na quarta-feira (29/10), um dia depois da operação, e quando a filha ainda não havia sido liberada. "Eles [os policiais] estavam querendo entrar dentro da casa dela [...]. Só tinha mulher e criança. E ela não queria deixar eles entrarem. Ela falou: 'A operação de vocês, o trabalho de vocês é aí fora. Não é aqui dentro'", contou Selma. Ainda segundo a moradora, os agentes usaram spray de pimenta dentro da casa, afetando uma criança de dois anos. "A criança passou mal, ficou com febre. Tudo isso está gravado." Veja os vídeos que estão em alta no g1 Selma se refere à live que Gabriela e ao menos uma das amigas fizeram no momento da operação e registraram a imagem dos policiais entrando em sua casa. A BBC News Brasil viu dois vídeos curtos gravados pelas moradoras. Em um deles, policiais estão na porta e é possível identificar algumas crianças na casa, inclusive a criança de colo mencionada por Selma. Uma mulher grava uma live e um outro celular a grava. A mulher diz: "Vacilão são vocês. Nós somos certo pelo certo. Nós somos moradores, não é traficante, não". Em outro vídeo, um policial dá voz de prisão a uma mulher, em meio a gritos e latido de cachorro. Um adolescente aparece na cena. Alguém grita: "É trabalhador". Segundo Selma, só havia mulheres, crianças e um adolescente dentro da residência, por isso a resistência em deixar que os agentes entrassem. Apenas Gabriela foi levada pelos policiais. Quando falou com a reportagem, Selma temia que a filha pudesse ter seu nome envolvido em outras atividades ilícitas. "Ela foi dada como bandida, algemada. Eles estão falando que ela é do tráfico, ela não é do tráfico. Ela tem um filho de 6 anos. Ela faz faxina. Faz o dinheirinho dela. Paga o aluguel", contou. Na sexta-feira, Defensoria Pública do Rio informou que Gabriela havia sido liberada, mas o temor de Selma se revelou verdadeiro. Segundo o Ministério Público do Rio, a faxineira, mãe de um menino de 6 anos que estava na casa no momento, foi detida "em flagrante pelos crimes de associação para o tráfico (art. 35 da Lei de Drogas) e resistência (art. 329 do Código Penal)" e um promotor vai decidir se vai oferecer denúncia contra ela ou não. Segundo o relato do MP, Gabriela fez uma live enquanto os agentes buscavam refúgio no portão de sua casa "informando o local exato onde os policiais estavam abrigados", o que "resultou em novos disparos oriundos de outro ponto da comunidade". Depois, os policiais entraram a casa para fazer a "prisão em flagrante" de Gabriela. "Contudo, havia diversas pessoas no interior do imóvel, que passaram a trocar seus aparelhos celulares entre si na tentativa de confundir os agentes", seguiu o MP. "No momento da prisão, Gabriela ainda teria tentado pegar o fuzil de um policial civil, tendo sido necessário o uso moderado da força para contê-la e imobilizá-la, evitando que a situação tomasse proporções mais graves", diz o nota do Ministério Público. Para o MP, a atitude dela "além de ter colocado em risco a vida dos policiais civis — que estariam amparados por uma das exceções constitucionais à inviolabilidade do domicílio —, também estimula e fortalece a ação da facção criminosa." Em sua nota, o Ministério Público do Rio cita ainda que Gabriela visitou na cadeia um homem foragido e denunciado sob a acusação de ser integrante do Comando Vermelho. Moradores de várias comunidades no Rio protestaram contra operação da terça-feira. EPA 'Estritamente especulativo' Questionado sobre o caso de Gabriela e os relatos de agressão feito por Selma, a Secretaria de Segurança do Rio, responsável pelas polícias, não respondeu à BBC News Brasil. O MP também não comentou as acusações de agressão feitas pela mãe da acusada, mas informou que o caso será remetido à Promotoria de Investigação para apurar se houve excesso na ação dos policiais. Questionada sobre o caso, a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro disse à reportagem avaliar ser um exagero interpretar a conduta de Gabriela como indicativa de associação para tráfico. "Me parece demasiado, porque estritamente especulativo. Como há advogado [no caso], não podemos avançar nas informações além disso", disse o defensor público Marcos Paulo Dutra Santos, coordenador do Núcleo de Defesa Criminal. A reportagem buscou Gabriela e os familiares para comentar a acusação do MP, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. O professor de direito penal da FGV Direito Rio Thiago Bottino questiona a argumentação do Ministério Público contra a faxineira. "O que é uma associação para o tráfico? A pessoa que de uma forma estável, repetida, auxilia a prática desse crime específico. Uma live não caracteriza uma associação estável, nada mais é do que ela se protegendo contra a invasão da casa dela. Visitar qualquer pessoa jamais pode ser entendido como indício de associação para o trafico. Do contrário todas as mães, irmãs, filhas e avós seriam suspeitas do mesmo crime", disse Bottino. Ainda segundo o MP, os agentes "apenas buscavam abrigo contra os disparos" e teriam dito isso à moradora. O professor de direito Thiago Bottino esclarece que não há autorização para que os policiais entrem sem mandado judicial na casa das pessoas. Há uma ressalva, no entanto, para o argumento dado pelo Ministério Público em relação ao caso de Gabriela. "Se eles estavam querendo se abrigar na casa dela porque estavam durante um tiroteio, embora seja algo proibido, ao mesmo tempo é autorizado, a gente vai chamar de estado de necessidade. A pessoa, diante de uma situação de perigo, pratica uma conduta proibida", avalia Bottino. Ainda assim, o professor avalia que a argumentação do Ministério Público de que fazer a live colocaria a segurança dos policiais é fraca. "Se as pessoas já estavam invadindo a casa dela e estavam trocando tiros com outras pessoas, em risco eles já estavam. Quem estava agora em risco em razão da invasão deles era ela. Eles colocaram ela em risco, não ela os colocou em risco, é bom deixar claro quem gera risco para quem." A operação da polícia do Rio contra o Comando Vermelho deixou 121 mortos, na ação policial mais letal da história do Brasil. Uma semana depois, as autoridades do Rio de Janeiro ainda não divulgaram a lista de 113 presos na ação e não responderam o motivo, quando questionadas pela reportagem.